Rio, 2 de fevereiro de 2016
Vítimas da microcefalia e do abandono
Existe uma falta de preocupação do Estado brasileiro em formar um sistema nacional efetivo de atendimento aos direitos básicos das pessoas com deficiência
O modo como o Brasil vem tratando o surgimento de um número cada vez maior de crianças nascendo com microcefalia porque as mães tiveram zika durante a gravidez me espanta.
O descaso do Estado brasileiro com a construção de políticas públicas consistentes em relação às pessoas com deficiência é estarrecedor. Não me enganam declarações de ministros, lançamentos de planos, adesões a programas, legado social e outras tentativas de angariar simpatia.
Tive uma irmã com deficiência, uma das presenças mais bonitas na minha vida. Ela apenas sorria, nem mesmo o simples ato de engolir aprendeu a fazer, e viveu 12 anos pelo carinho de meus pais na vontade absoluta da luta quase solitária para fazê-la viver feliz.
Há alguns anos me perguntaram o que tinha para dizer a mães que acabavam de ter filhos com deficiência. Embora entre pais e mães de pessoas com deficiência, respondi: “Sentava na calçada e chorava, chorava muito, porque o abandono é absoluto, tudo será conquistado pela capacidade de luta de cada mãe, de cada família.”
Existe uma falta de preocupação do Estado brasileiro — a palavra correta é omissão — em formar um sistema nacional efetivo de atendimento aos direitos básicos das pessoas com deficiência. O SUS tem parte nessa exclusão, não atendendo ou não o fazendo adequadamente, seja no plano das ações gerais, seja no das necessidades específicas.
De que adianta o ministro da Saúde divulgar que existem no Brasil cerca de 150, 200 centros especializados de reabilitação integrados ao SUS? Ou declarar a criação do Plano Nacional de Enfrentamento à Microcefalia e publicar, às pressas, um manual para atendimento em estimulação precoce que diz: “A estimulação precoce de bebês nascidos com microcefalia promove a harmonia do desenvolvimento entre vários sistemas orgânicos funcionais... dependentes ou não da maturação do sistema nervoso central”.
Sabemos que a microcefalia, com raras exceções, causa um severo e irreversível dano ao cérebro, e por isso ao desenvolvimento da criança, seja intelectual, seja motor, seja visual ou auditivo. Desenvolvimento harmônico?
O Brasil não tem política pública que possibilite o atendimento adequado a crianças com deficiência, muito menos àquelas com deficiência grave. Não há centro de atendimento para a manutenção de qualidade de saúde e vida básica nem centros de atendimento-dia. Os centros de reabilitação são poucos e precários. Até hoje é a rede de instituições filantrópicas que faz esse trabalho solitário, menosprezada pelo Estado. Desenvolvimento harmônico? Mães, que não conseguem nem mesmo manter seus filhos com microcefalia, ou com formas graves de deficiência, os abandonam. Instituições de permanência adequadas? Elas são pouquíssimas com atendimento razoável. No Rio conheço apenas o Lar Maria de Lurdes e 55 vagas em casas-lares da prefeitura.
Exemplos? O Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que dirijo, tem ação na Justiça para o fornecimento de fraldas, talco e anticonvulsivante para uma menina com microcefalia. Foi necessário pedir à Justiça! A Secretaria de Saúde respondeu que o remédio precisava ser licitado, não estava em sua lista. O remédio custa apenas R$ 9!!! Sua mãe a trata com o maior cuidado, tem cinco filhos e um salário-mínimo para viver.
Só existe abandono.
Teresa Costa d’Amaral Superintendente do IBDD
http://noblat.oglobo.globo.com/geral/noticia/2016/01/vitimas-da-microcefalia-e-do-abandono.html |